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Era o mês de Dezembro. Chovia torrencialmente. O mar estava ovelhado, como dizem os marinheiros, e temia-se que o vapor da carreira não fizesse serviço no porto. A noite foi algo tempestuosa mas, como por milagre, a manhã despertou calma, sem vento nem chuva.
Os marinheiros dirigiram-se para o cais, pois o velho “Lima” devia em pouco aparecer ao lado do Castelete e dirigir-se, em marcha reduzida, para a baía. Lancha e barcos de descarga já estavam prontos a sair a “Carreira” para se dirigirem ao fundeadouro.
Era o mês do Natal e o comércio aguardava, com ansiedade, as mercadorias para a quadra festiva. Além disso, esperava-se algum estudante que viesse passar as férias com a família, não muitos, pois poucos eram aqueles que se davam “ao luxo” de frequentar escolas superiores.
E o “Lima” surgiu ronceiro e um tanto inclinado para bombordo, como vinha sendo habitual. O “Prático da Baía” já estava no “ancoradouro” aguardando o barco, para lhe indicar o local exacto de “deitar o ferro”. Era assim todos os meses, a menos que o mar tempestuoso não permitisse “fazer serviço” e então lá seguia o “Lima” até ao Faial onde desembarcava os passageiros e esperava que o tempo amainasse para, no dia seguinte, nos portos de regresso, fazer o serviço de carga e descarga e tomar algum passageiro, - eram sempre poucos - que nele embarcavam para as ilhas ou para o continente. E, durante os meses de Inverno, quantas vezes isso acontecia!
Há dezenas de anos o Antonico havia embarcado no mesmo navio, rumo a S. Miguel, afim de tomar o vapor que por lá passava algumas vezes no ano, rumo aos Estados Unidos. Um agente de viagens havia-lhe preparado o “visto” no Consulado Americano e reservado a passagem a pedido de um tio que havia emigrado para a Califórnia, ainda rapaz e por lá se fixara, vigiando ovelhas e, depois, trabalhando numa leitaria. Há quantos anos! Por lá se acomodara, casara e já tinha filhos e netos. E nunca mais voltara à terra.
Uma ou duas vezes no ano escrevia aos Pais mas isso deixou de fazer quando eles faleceram.
Agora era o sobrinho que para lá ia, antes de entrar na idade da Tropa, a pedido da irmã que por cá ficara e velara os Pais.
Nos primeiros anos foi difícil a vida do Antonico. O Patrão, um mexicano, era mesmo mau e tratava os trabalhadores do seu “fame” como negros. O Antonico tudo foi suportando. Da soldada que recebia mandava algumas “dólas” aos pais pelo Natal e o resto ia depositando no Banco, a conselho de um companheiro cabo-verdiano.
Passaram-se meses e anos. O Antonico continuava a trabalhar para o mesmo patrão e a juntar dólares. Certo dia, porém, resolveu ir ao banco saber qual o montante das suas economias. Não acreditou. Lá estavam, com juros acumulados, alguns milhares, não poucos. Ficou surpreendido e sem saber como proceder.
Casar não queria pois detestava a maneira de viver das americanas. À sua volta não havia portuguesas. Não se ia, pois, “enforcar” com qualquer rapariga desconhecida. Demais, não tinha jeito para negócios e o seu dinheiro, só a render juros, não seria suficiente para a velhice, quando o patrão já não precisasse dele. Conversou com o companheiro. Escreveu à mãe perguntando como era a vida por cá, se havia prédios à venda e se davam rendimento.
A resposta não tardou. O Antonico tomou uma resolução: voltar à terra donde saíra há tantos anos. Aí procurar uma moça prendada com quem casar e constituir a sua família. Comprar alguns prédios e dedicar-se a trabalhar o que era seu. E, se melhor o pensou, melhor o fez.
Despediu-se do “Bosse” e dos poucos amigos que tinha. Foi à “estoa” com o companheiro e comprou alguns fatos e peças de roupa para trazer. Foi à cidade e procurou uma agência de viagens que lhe preparou a documentação e a passagem de regresso. E... num dia de Dezembro, partiu. Estava-se próximo do Natal ou da festa do São Nicolau, como por lá se dizia. As ruas das cidades e vilas já se encontravam iluminadas para a grande festa. Antonico nem nisso reparou. Tinha um fito: chegar à sua terra e abraçar a mãe que já devia estar muito velhinha.
Tudo correu como planeara. Da Califórnia veio em carro de fogo para Boston e aí tomou um dos barcos da Fabre Line que escalavam Ponta Delgada. Quando chegou, o “Lima” já estava na doca. No dia seguinte seguiria para as “Ilhas de Baixo”. Na Alfandega tudo correu pelo melhor. Despachada a carga, tomou o “Lima” e instalou-se na segunda classe. Três dias demorou a viagem, pela Terceira, Graciosa e São Jorge.
Naquela manhã de Dezembro, desembarcou na sua ilha. Não conheceu ninguém mas lembrava-se da casa dos Pais. Não demorou muito a lá chegar e a abraçar a velha Mãe que o recebeu surpreendida e chorosa.
“Nunca julguei ver-te mais, meu querido filho! Foi a melhor prenda do Natal que podia ter em toda a minha vida! Que Deus te abençoe e faça sempre feliz, como feliz me fizeste com o teu regresso a esta pobre casa!”
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